*Reportagem por Isabela Moraes
Segundo os Princípios
de Yogyakarta, orientação sexual é a
profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero
diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações
íntimas e sexuais com essas pessoas; enquanto que identidade de gênero é a experiência
interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao
sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo.
Esses princípios
correspondem
a uma série de recomendações para os Estados sobre a aplicação da legislação
internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade
de gênero; em consonância a eles o Estado deve e tem gradualmente reconhecido
os deslocamentos da sexualidade e identidade de gênero – embora as vozes refratárias na sociedade civil e política. Grupos interessados se organizam para movimentar a opinião pública e pressionar governos, capitaneando a adoção de uma postura política que
melhor se comunique com a realidade social.
Esta reportagem trará cidadãs
trans, suas histórias, e de que maneira elas são assistidas, ou não, pelo
Estado brasileiro.
VIOLÊNCIA
E VISIBILIDADE
Em 2013, pela primeira
vez no Brasil são lançados dados oficiais sobre violações de direitos humanos
da população LGBT. O Relatório Sobre Violência Homofóbica
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência de República (SDH/PR) coletou,
ao longo de 2012, informações cedidas ao Disque
100 – Disque Direitos Humanos (canal federal de denúncias que envolvam
violações de direitos humanos) para criar um panorama das violações, seus tipos
mais recorrentes e as regiões com maiores incidências. O documento indica um
aumento de 166,09% nas ocorrências de violações por homofobia em todo o país,
entre 2011 e 2012.
Esse percentual
corresponde apenas às violências reportadas e não à totalidade ocorrida
cotidianamente, com efeito, acredita-se que o número de abusos perpetrados
contra a população LGBT seja maior.
Das ocorrências feitas
ao Disque 100, 12,7% delas
correspondiam a pessoas trans, contra 34% de vítimas gays. Em comparação com a
pesquisa de 2011, houve uma queda na “identificação da categoria” que se
enquadravam as vítimas, implicando na diminuição da proporção de transexuais e
travestis. Na pesquisa da SDH/PR conclui-se que 47,3% dos denunciantes não
conheciam as vítimas, contra 10,49% de denúncias efetuadas pela própria vítima.
A invisibilização e
falta de entendimento do que é a transexualidade e transgeneridade confunde a
sociedade e obscurece a coleta de dados. Ao utilizar a expressão violência
“homofóbica” não se está fazendo a devida distinção entre homofobia e
transfobia. A homofobia corresponde à rejeição à relação afetiva e ou sexual
entre pessoas do mesmo sexo; a transfobia, por sua vez, corresponde ao
preconceito dirigido a pessoas que “transgridem” as fronteiras do gênero, da
identidade. Ser trans não é necessariamente ser gay. “Identidade de gênero não
é orientação sexual, uma travesti pode ser lésbica, bissexual, assexuada ou
heterossexual, que é o meu caso”, afirma Geovana Soares, ativista LGBT e
transfeminista.
Geovana credita a
invisibilização das pessoas trans ao próprio movimento LGBT, que é notadamente
representado pelos gays em detrimento dos outros grupos, como bissexuais,
lésbicas e pessoas trans. "O movimento gay usou da gente pra ter massa e
se fortalecer, usou dos nossos dados pra reivindicar estatísticas de mortes de
homossexuais”. Linda Brasil, Coletivo
Desmontados e Amo Ser Trans, acrescenta que “além do movimento LGBT tem a
mídia, que tem grande responsabilidade nisso [usualmente se refere às
manifestações da Parada do Orgulho LGBT como “Parada Gay”]”.
Em Sergipe foram
registradas 31 denúncias referentes a 63 violações relacionadas à população
LGBT pelo poder público, mas os dados não fazem distinção entre violência
homofóbica e transfobia.
MERCADO
DE TRABALHO
Segunda
a Elancers, empresa de recrutamento e seleção para o mercado de trabalho,
20% das empresas que atuam no Brasil não contrataria pessoas homossexuais
(pesquisa realizada na internet com 10 mil empregadores). A alegação mais
recorrente é a de que não gostariam que a imagem de sua empresa fosse associada
à imagem do funcionário ou funcionária.
Geovana recorda alguns
momentos constrangedores quando decidiu entrar no mercado de trabalho formal. “Fui
procurar emprego numa loja feminina, [a gerente] disse que não haveria problema
de eu trabalhar na loja desde que trabalhasse como uma mulher cisgênera como as
outras funcionárias. Decidi cortar meu cabelo; como tinha cortado o cabelo com
um corte tido como masculino, e por ser travesti, [a gerente] disse ‘a gente ia
te contratar pra você se passar por mulher, e você assim não tá se passando
como mulher'. [A partir dessa experiência] eu tive que entender que, nesse
mundo binarista, se eu quisesse construir um futuro, eu teria que me encaixar
em algum padrão. Hoje eu tenho a aparência tida como feminina. E eu não sei se
é uma coisa legal você ter que se encaixar no padrão que te impõem”.
Em Aracaju, desde junho
de 2009, a Lei nº 3.723 proíbe todo ato ou manifestação atentatória ou
discriminatória praticada contra cidadão homossexual, bissexual, travesti ou
transexual. Entretanto, em seu art. 2º, inciso VI, que dispõe sobre
discriminação homofóbica no ambiente de trabalho, ela não inclui a transfobia
como ato proibitivo, isto é, a Lei não impede que se demita em função da
identidade de gênero, impede apenas que a demissão se dê em função da
orientação sexual.
“Eu
sou cabeleireira, mesmo nessa profissão dita “mais gay”, eu sofri preconceito.
Eu percebi que quando comecei meu processo de terapia hormonal algumas clientes
se afastaram, outras pessoas pararam de falar comigo e de frequentar o meu
salão”, diz Linda Brasil.
Segundo
militantes LGBTs, uma pesquisa da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e
Transexuais), apontada como maior representação trans do país, indica que 90%
das mulheres trans prostituem-se. A falta de instrução
assomada ao preconceito lega essas pessoas à condição de abandono; negligenciadas
pelo Estado e desassistidas, as mulheres trans são compulsoriamente inseridas
no mercado do sexo.
Linda
já passou por esse processo. “Tive a oportunidade de ir para a Itália, e
consequentemente lá acabei trabalhando como prestadora de serviços sexuais.
Passei cinco anos na Itália, fiquei clandestinamente e isso acarreta
consequências psicológicas e emocionais. Pra mim, e pra muitas meninas, é a
única forma de a gente ter alguma condição de fazer essa adequação física,
cirurgias plásticas, bem como ter alguma estabilidade”.
Uma
vez prostituindo-se, homens e, sobretudo mulheres trans, estão sujeitos às
precariedades comuns à profissão, desde sevícias, exploração e falta de
assistência médica. Sob a alegação de diminuir os riscos da atividade e erradicar
a marginalização, o PL 4211/2012, conhecido como Projeto de Lei Gabriela
Leite, de autoria do deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ), que desde
2013 aguarda apreciação do Plenário, pretende regulamentar a atividade dos/das
profissionais do sexo, um dos benefícios seria o direito à aposentadoria
especial, decorridos 25 anos de atuação profissional, e melhor acesso a
políticas de saúde pública.
EDUCAÇÃO
E RECONHECIMENTO SOCIAL
“Escola não é um
ambiente confortável pra ninguém, mas especificamente para pessoas trans, a
escola é um ambiente completamente hostil. A gente não é respeitada, a nossa
identidade de gênero é desrespeitada, sofremos diversos tipos de violência”,
diz Geovana ao relembrar uma ocasião em que foi hostilizada e obrigada pelos
professores a se retirar de um evento em uma escola. “Como sempre, a vítima é
culpabilizada pela agressão”, completa.
A dificuldade de assumir
plenamente sua identidade social configura um tipo de constrangimento, uma vez
que ao fazê-lo o jovem pode ser sujeitado à violência moral pela própria
instituição; na medida em que se sente inseguro e incoerente com as
expectativas no contexto da escola, surge a necessidade de abandonar os
estudos. A carência de uma estrutura curricular que sirva de base para
discussão, esclarecimento e humanização desse grupo contribui para o alijamento
de direitos básicos como a educação, e ajuda a manter o ciclo de evasão escolar
e exploração da mão de obra trans em subempregos e no mercado do sexo.
“Eu entrei [na
universidade] ia fazer quarenta anos, e não tinha nenhuma perspectiva, já
trabalhava como cabeleireira. O problema maior foi quando cheguei na
universidade; quando fiz a inscrição solicitei que usassem meu nome social, mas
o DAA [Diretório Acadêmico] disse que era impossível, que o sistema não tinha
campo para usar esse nome, a única forma era pedir que em cada semestre os
professores colocassem ao lado meu nome social na relação de chamadas. Pra mim
era constrangedor, porque era uma média de 6, 7, professores por semestre. No
primeiro dia de aula um professor disse que não iria fazer, se eu quisesse
mudar meu nome pra ele me chamar de forma diferente que eu fosse diretamente no
DAA” [através da Portaria nº12 foi possível atualizar seu nome nos cadastros
acadêmicos], diz Linda.
A
Resolução nº 12, aprovada em janeiro de 2015, prevê a garantia de acesso e
permanência do estudante trans nos sistemas de ensino. Segundo a medida, a
instituição deve reconhecer e adotar o nome social que melhor reflita a
identidade de gênero, desde que solicitado pelo próprio interessado,
independente de o estudante ser adolescente ou não possuir autorização dos
responsáveis. A regra também se aplicará
a processos seletivos para acesso a instituições e sistemas de ensino.
A
medida garante a utilização de banheiros, vestiários e demais espaços
segregados por gênero, em consonância com a identidade de gênero de cada um. De
outra parte, o nome social coexistirá com o nome de registro civil em
documentos internos utilizados pela administração da instituição. O artigo 2º
prevê a garantia, a quem solicitar, de tratamento oral exclusivamente pelo nome
social, não cabendo qualquer tipo de objeção de consciência.
Todavia,
Resoluções só possuem efeito interno, isto é, dentro do âmbito determinado por
elas. O respeito ao uso do nome social é recomendado especificamente no
contexto educacional. Sem que se promova a adoção de políticas de conscientização
e medidas coercitivas, tampouco um sistema educacional que ensine o respeito
aos contrates sociais, medidas como a Resolução nº12, ainda que representem um
avanço social, não são tão eficazes quando entram em contradição com a
realidade que circunda a escola. O PL 5.002/13, conhecido como Projeto de Lei
João W Nery, de autoria de Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Érika Kokay (PT-DF), se
aprovado, possibilitará a solicitação da alteração do nome e foto em todos os
documentos de identidade e proibirá qualquer referência à identidade anterior
do solicitante, salvo quando ele autorizar por escrito. A novidade é que para a
alteração no registro estarão dispensadas a autorização judicial e intervenção
cirúrgica para mudança de sexo.
ACESSO
À SAÚDE
Desde o lançamento da
última Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados com a Saúde (CID-10), pela OMS, frentes dos direitos LGBT e
organizações profissionais, a exemplo do Conselho Federal de Psicologia
brasileiro, lutam pela retirada da transexualidade e transgeneridade da
catalogação de Transtornos da Personalidade e do Comportamento do Adulto
(subclassificação: Transtornos de Identidade Sexual), inclusive exigindo que a
alegação de transtorno mental não seja pré-requisito para acesso à cirurgia de
transgenitalização. Na vanguarda, a França se tornou o primeiro país no mundo a
banir, em 2010, a transexualidade e transgeneridade da classificação de
doenças.
No Brasil, a partir de
1997, com a Resolução 1.482, a cirurgia de transgenitalização passou a ser
possível pelo Sistema Único de Saúde. Ampliada e ajustada em 2013 com a Portaria
nº 2.803, inclui as modalidades ambulatorial (acompanhamento clínico,
acompanhamento pré e pós-operatório e hormonioterapia), e hospitalar
(realização de cirurgias e acompanhamento pré e pós-operatório). Contudo, ainda
existe um número ínfimo de estados brasileiros que oferecem o acesso à cirurgia
(Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Rio Grande do Sul, Pernambuco), sendo desproporcional
para o número de solicitantes e dispendioso para quem vive em outro estado.
Ainda que a passagem seja paga pelo poder público, é o solicitante quem arca
com todas as despesas, sendo que o processo dura anos (antes mesmo de ser
submetido à cirurgia, o paciente deve fazer uso de hormônios e acompanhamento
médico regular por dois anos).
É na modalidade
ambulatorial que se tem acesso a hormônios para mudança corporal, uma vez que esse
acesso inexiste, muitas mulheres e homens trans recorrem a medidas
alternativas, como a automedicação. Geovana Soares conta que começou a fazer
uso de hormônios femininos ainda na adolescência. “Em Aracaju não tem
ambulatório, então [a gente] compra na farmácia e usa, sem acompanhamento
médico, sem saber o que tá usando. Eu comecei a usar hormônio com 17 anos de
idade. Imagine ser uma adolescente de 17 anos, sem acompanhamento médico
nenhum, sem nem saber o que estava tomando, sem nem saber as substanciam que
tinha no Perlutan”.
O Perlutan é um tipo de anticoncepcional injetável, que deve ser
aplicado nos glúteos e usado em dose única mensal, pode
ser comprado em farmácias sem prescrição médica. Seus efeitos colaterais
vão desde náuseas e depressão a
alterações no desejo sexual.
[O uso de
anticoncepcional] “Pode causar trombose, problemas no fígado. É comum ver
travestis reclamando de dores na perna, porque esses hormônios prejudicam a
circulação. Quando comecei a tomar o Perlutan, eu tomava uma injeção por
semana. O que uma mulher cisgênera toma uma vez por mês, eu tomava uma por
semana, e ainda complementava com dois comprimidos de Diane 35 [outro anticoncepcional] por dia. Essa automedicação vem
assim: uma travesti mais velha toma, tá ficando bonita, aí a gente vai e toma.
Não existe saúde pública para pessoas trans”. Um dos efeitos colaterais do Diane 35 é a trombose venosa profunda, que pode resultar em embolia
pulmonar.
Na saúde pública, o
acesso a hormônios passa pela afirmação de que se deseja trocar de sexo. O fato
é que na vida prática às vezes a mudança estética é desejável (como o
crescimento dos seios ou a voz mais grossa), mas a transgenitalização não é.
Como o tratamento hormonal é entendido pela saúde pública como preparação para
o processo cirúrgico, quem precisa apenas de tratamento hormonal encontra-se
excluído do processo.
Além da burocracia que
se interpõe entre pessoas que necessitam de assistência médica de alta complexidade
(como é considerada a cirurgia de transgenitalização) e o sistema de saúde,
existe a própria limitação de acesso à saúde pública de baixa complexidade.
Embora medidas públicas tentem promover a humanização do atendimento a pessoas
trans, não são raros os casos de pessoas rechaçadas em postos e hospitais
públicos. “Tive plano de saúde até o 21
anos de idade. A única vez que precisei ir a uma urgência, [a atendente] me
olhou, tirou os óculos, me olhou dos pés à cabeça, com cara de nojo, e disse
‘você quer o quê aqui?’. Eu fui constrangida porque ela gritou o meu nome civil
bem alto pra todo mundo ouvir, eu fui maltratada porque me trataram como se eu
fosse bicho. Resultado: todas as vezes que ficar doente vou precisar me
automedicar em casa. Só saio de casa se estiver morrendo", diz Geovana.
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