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Foto: Marco Vieira |
:editoria reportagem:
por Rafael Amorim
De qualquer
perspectiva e sob qualquer ângulo, a erupção de um vulcão é uma imagem difícil
de tirar da cabeça. Talvez pelas cores – vibrantes, vermelhas, pulsantes.
Talvez pela temperatura – alta, fervente, inóspita. Talvez, simplesmente, pela
plasticidade: a beleza gerada da destruição e a irreversibilidade da natureza
alterada. Vista através de grandes telas ou de pequenas projeções, uma erupção
pode ser hipnotizante. Sentida por meio do tremor súbito da terra e pelo
barulho gritante nos instantes em que se concretiza, uma erupção pode ser
ameaçadora. É somente quando vista de frente, entretanto, a alguns metros do
pico ou da primeira fileira, que uma erupção pode ser digerida.
Como qualquer
outro, um projeto – ou um vulcão – se desenvolve em fases, sendo preciso
conhecê-las para, de fato, compreender seus impactos.
FORMAÇÃO DO MAGMA – Debaixo da superfície,
rochas são fundidas em altas temperaturas, formando o magma. Gênese, origem,
início.
Apresentado
pelo Grupo Teatral Caixa Cênica, dirigido por Sidnei Cruz e escrito pela
dramaturga Lucianna Mauren, o espetáculo “Vulcão” foi gerado através de
fragmentos da memória da atriz Diane Veloso, a responsável pela interpretação
da personagem – em todas suas camadas e facetas – que sustenta o solo. Com um
desenvolvimento não linear, a peça se origina da necessidade de Diane em
transformar a energia de sua história – até então, com um caráter
autobiográfico – em uma tradução poética e autônoma – alcançando, assim, um
caráter universal.
“Não é a minha
história, mas é uma poesia que foi construída em cima de relatos meus. Então,
cada vez mais o espetáculo vai ganhando uma autonomia, independente de ser
autobiográfico. Ele se torna um organismo vivo”, comenta Diane.
A proposta de
explorar as múltiplas faces da atriz exigiu uma direção que tivesse domínio
sobre esse processo de entrega. É nesse contexto que Sidnei Cruz surge.
Dedicando-se ao teatro há mais de trinta anos, Sidnei é “vivo, vigoroso e
verdadeiro em cena”, segundo palavras da própria Diane, trazendo para o
espetáculo sua experiência e encarando o desafio como escavar uma
montanha, em busca de um minério que é, no final das contas, um espanto cênico,
nas palavras do diretor.
Para ele, esse
é um espetáculo que só se torna possível através de Diane, sendo impossível sua
execução sem ela. “Vulcão não é um monólogo! É, antes de tudo, uma
multiplicidade estilhaçada. Desdobramento de personas, de sujeitos híbridos, um
relato alegro-trágico de um corpo manifesto em multidão. Não é teatro. Mas,
contém teatro, também. Só foi possível realizar a experiência porque é através
do físico-espiritual de Diane Veloso, uma artista de corpo e alma imersos num
projeto autoral. A experiência é intransferível. Não se repetirá nunca em lugar
algum, a não ser nela mesma”, diz.
CHOQUE ENTRE AS PLACAS – As placas tectônicas
que formam a superfície terrestre entram em colapso, emergindo e submergindo-se
umas sob as outras, movimentando-se e gerando, assim, aberturas na crosta.
Execução, desenvolvimento, geração.
O espetáculo é
produto de um processo que é, segundo Diane, inventivo. A proposta de inovar e
garantir um Teatro Performativo fez com que a atriz e o diretor partissem para
experimentações, extraindo delas, a fórmula – ou, melhor, o consenso de
inexistência de uma – para que o solo funcionasse segundo as
expectativas. As dificuldades para conseguir a organicidade necessária
que projetasse em “Vulcão” as ideias de ambos, entretanto, foram muitas.
“Os desafios
relativos ao processo de imaginação e construção de uma experiência de Teatro
Performativo são muitos. A começar pela escolha de um espaço não convencional.
Uma escolha desconfortável, pois a equipe tem que inventar arquitetonicamente
tudo. Chão, teto, paredes, iluminação, marcenaria, pintura, porta, banco,
limpar, tirar entulho, lavar, remover plantas, exterminar insetos (risos),
travar uma batalha insana contra o fenômeno da natureza – a chuva – que
impiedosamente desaba sobre nós a qualquer momento do processo, construir uma
calha para desviar o volume acumulado de água… Essas tarefas, esses esforços,
vão dilatando os músculos, ampliando as percepções, testando as resistências e
jogando todos da equipe no processo vertiginoso da criação artística utópica”,
conta Sidnei.
Além dos
desafios técnicos, o espetáculo também se torna um desafio pessoal para Diane
que precisa, diariamente, conciliá-lo com imprevistos de sua rotina. Exigindo
da atriz não somente uma forte carga expressiva, “Vulcão” também requer esforço
físico. “É bem complexo, é uma preparação em que eu ensaio durante a semana –
quando não estou doente”, comenta.
ERUPÇÃO – Após o colapso das placas
tectônicas, o magma presente entre a crosta e o manto que se encontra em altas
temperaturas e pressão, excede-se, expelindo a lava para fora da terra. Fogo.
Destruição. Concretização.
Estreado em 5
de junho, no espaço Intera – Arte e Economia Criativa, “Vulcão” foi apresentado
em duas sessões e, finalmente, ganhou vida através da interpretação de Diane
Veloso e de uma produção cuidadosa para que tudo funcionasse no momento
preciso, da maneira correta. O solo que apresenta diversas nuances e requer uma
interação contínua, tanto da atriz com o público, como da mesma com o cenário,
conseguiu sintetizar o trabalho exercido por toda a equipe de maneira
satisfatória; e vem se tornando, a cada apresentação, mais orgânico.
“Dramaturgia,
iluminação, atuação, ambientação cênica, música, indumentária… Braços de uma
centopeia angustiante que vai se movendo organicamente por instinto, técnica e
malícia. De tal modo que só existe em conjunto, separados se tornam vazios,
mortos”, afirma Sidnei acerca do processo de construção do espetáculo.
Se a proposta
de ousar e explorar o máximo de elementos inovadores define “Vulcão”, Diane se
torna a personificação desse desafio. Expressiva, a atriz fala com os olhos e
de maneira direta – enxerga a reação do público com uma precisão cirúrgica. O
público, por sua vez, acompanha cuidadosamente todos os movimentos incessantes
dela pelo cenário. Enquanto desliza pelo ambiente, cada objeto presente ganha
sentido e se comunica com o que vai sendo dito – de forma gritada e silenciosa.
Diane está, mais do que nunca, múltipla.
Para as
pessoas que estão sentadas em frente a ela, a dor é palpável, a doença que é
tão questionada, se torna visível. O inverso da personagem é refletido em um
espelho e torna-se nosso. Comemoramos a chegada do carnaval e lamentamos a
partida – que se torna, espera – de um grande amor. Pulsamos com a marchinha
cantada em meio à avenida lotada, sofremos com a mesma canção sussurrada na
ponta do ouvido. Somos, assim, apresentados a uma série de Dianes que se
misturam e se completam em uma excelência incontestável, com uma carga poética
que comove na mesma proporção em que convence.
Victor
Cardozo, presente na estreia, acredita que a entrega de Diane é um dos fatores
que determinam o sucesso do espetáculo. “Achei a performance dela
impressionante, pela forma como se entrega de um jeito visceral a uma
persona que transparece tanto dela mesma. Gostei de como que ela interage
com o público de forma tão próxima, quase que exigindo uma resposta emocional
imediata de quem assiste”, completa.
Para ele, a
concepção punk das intervenções musicais também faz com que o espetáculo se
torne uma experiência interessante. Assinando a trilha sonora, Alex Sant’Anna – que, inclusive, acaba de lançar seu novo single "Enquanto Espera" e
Leo Airplane conseguem traduzir, através da musica, a excentricidade e
personalidade do solo.
Parte
fundamental do espetáculo, o público reage a cada instante de maneira
particular. O texto, que até então é resultante do histórico pessoal da atriz,
torna-se uma experiência compartilhada, permitindo diversas interpretações e
visões. Após a apresentação e até mesmo através da página oficial no Facebook,
as pessoas fazem questão de dividir suas impressões e contar de que maneira
foram impactadas por Vulcão.
“O público é
um monstro com milhares de cabeças num corpo unido, provisoriamente, pelo
estar-junto, numa sessão e numa sala para a fruição. Não temos (e nem devemos)
ter controle algum sobre as percepções do “público”. Temos pistas de como
podemos provocá-lo, por meio de pesquisas sobre o contexto, o lugar, a
história. O território escolhido para o confronto. Porque é disso que se trata:
de um confronto. Uma guerra. Um embate de sentidos entre artistas e
espectadores. É desse choque que pode surgir alguma coisa nova”,
comenta Sidnei.
Para Diane,
tirar uma pessoa de sua casa para assistir ao seu espetáculo é uma responsabilidade
enorme, tornando a resposta do público gratificante. “Ter esse retorno está
sendo sensacional, porque a gente está vendo que estamos comunicando. A forma
que comunica vai depender da própria experiência de quem está assistindo”, diz.
“Eu lembro que tiveram algumas apresentações – a penúltima e a última – em que
as pessoas cantaram uma música comigo, mas elas não conheciam a música. Então
foi um momento muito emocionante”, completa.
É preciso se aproximar para digerir uma erupção e compreender,
de fato, quão destrutivo pode ser um vulcão. Presente na primeira fileira, não é fácil se dar conta do risco. Somos pegos de surpresa
pela erupção. Sentindo o ar quente embriagar nossos olhos e ouvindo o barulho do
estrondo, mas foi só quando a lava finalmente encontra nosso corpo que entendemos,
de fato, o espetáculo. Compartilhar essa experiencia, entretanto, seria perda
de tempo. Afinal, só quem possui queimaduras pelo corpo reconhece onde a dor se
aloja, onde a doença habita. E sabe que é onde se dói que mais se sente.
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