quarta-feira, 16 de março de 2016

“Vulcão”: onde a dor se aloja, onde a doença habita

Foto: Marco Vieira

:editoria reportagem:
por Rafael Amorim


De qualquer perspectiva e sob qualquer ângulo, a erupção de um vulcão é uma imagem difícil de tirar da cabeça. Talvez pelas cores – vibrantes, vermelhas, pulsantes. Talvez pela temperatura – alta, fervente, inóspita. Talvez, simplesmente, pela plasticidade: a beleza gerada da destruição e a irreversibilidade da natureza alterada. Vista através de grandes telas ou de pequenas projeções, uma erupção pode ser hipnotizante. Sentida por meio do tremor súbito da terra e pelo barulho gritante nos instantes em que se concretiza, uma erupção pode ser ameaçadora. É somente quando vista de frente, entretanto, a alguns metros do pico ou da primeira fileira, que uma erupção pode ser digerida.
Como qualquer outro, um projeto – ou um vulcão – se desenvolve em fases, sendo preciso conhecê-las para, de fato, compreender seus impactos.

FORMAÇÃO DO MAGMA – Debaixo da superfície, rochas são fundidas em altas temperaturas, formando o magma. Gênese, origem, início.
Apresentado pelo Grupo Teatral Caixa Cênica, dirigido por Sidnei Cruz e escrito pela dramaturga Lucianna Mauren, o espetáculo “Vulcão” foi gerado através de fragmentos da memória da atriz Diane Veloso, a responsável pela interpretação da personagem – em todas suas camadas e facetas – que sustenta o solo. Com um desenvolvimento não linear, a peça se origina da necessidade de Diane em transformar a energia de sua história – até então, com um caráter autobiográfico – em uma tradução poética e autônoma – alcançando, assim, um caráter universal.
“Não é a minha história, mas é uma poesia que foi construída em cima de relatos meus. Então, cada vez mais o espetáculo vai ganhando uma autonomia, independente de ser autobiográfico. Ele se torna um organismo vivo”, comenta Diane.
A proposta de explorar as múltiplas faces da atriz exigiu uma direção que tivesse domínio sobre esse processo de entrega. É nesse contexto que Sidnei Cruz surge. Dedicando-se ao teatro há mais de trinta anos, Sidnei é “vivo, vigoroso e verdadeiro em cena”, segundo palavras da própria Diane, trazendo para o espetáculo sua experiência e encarando o desafio como escavar uma montanha, em busca de um minério que é, no final das contas, um espanto cênico, nas palavras do diretor.
Para ele, esse é um espetáculo que só se torna possível através de Diane, sendo impossível sua execução sem ela. “Vulcão não é um monólogo! É, antes de tudo, uma multiplicidade estilhaçada. Desdobramento de personas, de sujeitos híbridos, um relato alegro-trágico de um corpo manifesto em multidão. Não é teatro. Mas, contém teatro, também. Só foi possível realizar a experiência porque é através do físico-espiritual de Diane Veloso, uma artista de corpo e alma imersos num projeto autoral. A experiência é intransferível. Não se repetirá nunca em lugar algum, a não ser nela mesma”, diz.
CHOQUE ENTRE AS PLACAS – As placas tectônicas que formam a superfície terrestre entram em colapso, emergindo e submergindo-se umas sob as outras, movimentando-se e gerando, assim, aberturas na crosta. Execução, desenvolvimento, geração.
O espetáculo é produto de um processo que é, segundo Diane, inventivo. A proposta de inovar e garantir um Teatro Performativo fez com que a atriz e o diretor partissem para experimentações, extraindo delas, a fórmula – ou, melhor, o consenso de inexistência de uma – para que o solo funcionasse segundo as expectativas. As dificuldades para conseguir a organicidade necessária que projetasse em “Vulcão” as ideias de ambos, entretanto, foram muitas.
“Os desafios relativos ao processo de imaginação e construção de uma experiência de Teatro Performativo são muitos. A começar pela escolha de um espaço não convencional. Uma escolha desconfortável, pois a equipe tem que inventar arquitetonicamente tudo. Chão, teto, paredes, iluminação, marcenaria, pintura, porta, banco, limpar, tirar entulho, lavar, remover plantas, exterminar insetos (risos), travar uma batalha insana contra o fenômeno da natureza – a chuva – que impiedosamente desaba sobre nós a qualquer momento do processo, construir uma calha para desviar o volume acumulado de água… Essas tarefas, esses esforços, vão dilatando os músculos, ampliando as percepções, testando as resistências e jogando todos da equipe no processo vertiginoso da criação artística utópica”, conta Sidnei.
Além dos desafios técnicos, o espetáculo também se torna um desafio pessoal para Diane que precisa, diariamente, conciliá-lo com imprevistos de sua rotina. Exigindo da atriz não somente uma forte carga expressiva, “Vulcão” também requer esforço físico. “É bem complexo, é uma preparação em que eu ensaio durante a semana – quando não estou doente”, comenta.
ERUPÇÃO – Após o colapso das placas tectônicas, o magma presente entre a crosta e o manto que se encontra em altas temperaturas e pressão, excede-se, expelindo a lava para fora da terra. Fogo. Destruição. Concretização.
Estreado em 5 de junho, no espaço Intera – Arte e Economia Criativa, “Vulcão” foi apresentado em duas sessões e, finalmente, ganhou vida através da interpretação de Diane Veloso e de uma produção cuidadosa para que tudo funcionasse no momento preciso, da maneira correta. O solo que apresenta diversas nuances e requer uma interação contínua, tanto da atriz com o público, como da mesma com o cenário, conseguiu sintetizar o trabalho exercido por toda a equipe de maneira satisfatória; e vem se tornando, a cada apresentação, mais orgânico.
“Dramaturgia, iluminação, atuação, ambientação cênica, música, indumentária… Braços de uma centopeia angustiante que vai se movendo organicamente por instinto, técnica e malícia. De tal modo que só existe em conjunto, separados se tornam vazios, mortos”, afirma Sidnei acerca do processo de construção do espetáculo.
Se a proposta de ousar e explorar o máximo de elementos inovadores define “Vulcão”, Diane se torna a personificação desse desafio. Expressiva, a atriz fala com os olhos e de maneira direta – enxerga a reação do público com uma precisão cirúrgica. O público, por sua vez, acompanha cuidadosamente todos os movimentos incessantes dela pelo cenário. Enquanto desliza pelo ambiente, cada objeto presente ganha sentido e se comunica com o que vai sendo dito – de forma gritada e silenciosa. Diane está, mais do que nunca, múltipla.
Para as pessoas que estão sentadas em frente a ela, a dor é palpável, a doença que é tão questionada, se torna visível. O inverso da personagem é refletido em um espelho e torna-se nosso. Comemoramos a chegada do carnaval e lamentamos a partida – que se torna, espera – de um grande amor. Pulsamos com a marchinha cantada em meio à avenida lotada, sofremos com a mesma canção sussurrada na ponta do ouvido. Somos, assim, apresentados a uma série de Dianes que se misturam e se completam em uma excelência incontestável, com uma carga poética que comove na mesma proporção em que convence.
Victor Cardozo, presente na estreia, acredita que a entrega de Diane é um dos fatores que determinam o sucesso do espetáculo. “Achei a performance dela impressionante, pela forma como se entrega de um jeito visceral a uma persona que transparece tanto dela mesma. Gostei de como que ela interage com o público de forma tão próxima, quase que exigindo uma resposta emocional imediata de quem assiste”, completa.
Para ele, a concepção punk das intervenções musicais também faz com que o espetáculo se torne uma experiência interessante. Assinando a trilha sonora, Alex Sant’Anna – que, inclusive, acaba de lançar seu novo single "Enquanto Espera" e Leo Airplane conseguem traduzir, através da musica, a excentricidade e personalidade do solo.
Parte fundamental do espetáculo, o público reage a cada instante de maneira particular. O texto, que até então é resultante do histórico pessoal da atriz, torna-se uma experiência compartilhada, permitindo diversas interpretações e visões. Após a apresentação e até mesmo através da página oficial no Facebook, as pessoas fazem questão de dividir suas impressões e contar de que maneira foram impactadas por Vulcão.
“O público é um monstro com milhares de cabeças num corpo unido, provisoriamente, pelo estar-junto, numa sessão e numa sala para a fruição. Não temos (e nem devemos) ter controle algum sobre as percepções do “público”. Temos pistas de como podemos provocá-lo, por meio de pesquisas sobre o contexto, o lugar, a história. O território escolhido para o confronto. Porque é disso que se trata: de um confronto. Uma guerra. Um embate de sentidos entre artistas e espectadores. É desse choque que pode surgir alguma coisa nova”, comenta Sidnei.
Para Diane, tirar uma pessoa de sua casa para assistir ao seu espetáculo é uma responsabilidade enorme, tornando a resposta do público gratificante. “Ter esse retorno está sendo sensacional, porque a gente está vendo que estamos comunicando. A forma que comunica vai depender da própria experiência de quem está assistindo”, diz. “Eu lembro que tiveram algumas apresentações – a penúltima e a última – em que as pessoas cantaram uma música comigo, mas elas não conheciam a música. Então foi um momento muito emocionante”, completa.

É preciso se aproximar para digerir uma erupção e compreender, de fato, quão destrutivo pode ser um vulcão. Presente na primeira fileira, não é fácil se dar conta do risco. Somos pegos de surpresa pela erupção. Sentindo o ar quente embriagar nossos olhos e ouvindo o barulho do estrondo, mas foi só quando a lava finalmente encontra nosso corpo que entendemos, de fato, o espetáculo. Compartilhar essa experiencia, entretanto, seria perda de tempo. Afinal, só quem possui queimaduras pelo corpo reconhece onde a dor se aloja, onde a doença habita. E sabe que é onde se dói que mais se sente.


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