Juliana Teixeira
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Ilustração: Negahamburguer, artista brasileira engajada na causa feminista, cujo trabalho ganhou notoriedade nas redes sociais.
Em 1851, Sojourner Truth, ex-escrava e palestrante estadunidense, fez um discurso que foi de encontro a qualquer formalidade social. “Ain’t I a Woman?” ou “Eu não sou uma mulher?” foi enunciado como uma intervenção na Women’s Rights Convention em Ohio e surpreendeu homens e mulheres ao chamar atenção para o abismo social que separava mulheres negras e brancas. As primeiras sofreram o machismo de forma historicamente diferenciada das segundas. Para além das desigualdades de gênero, as mulheres negras precisaram lidar com diferenças de raça que influenciaram desde o mercado de trabalho à sua sexualidade. O feminismo construído a partir do movimento sufragista deixou de lado, mesmo que não intencionalmente, as mulheres que estavam alheias a esse processo, pois já tinham sua mão de obra explorada e transformada em mercadoria.
“Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher?”. As palavras de Sojourner apontam para mais de um século atrás, mas as desigualdades que ela denunciava refletem a sociedade atual e são sinalizadores de que algo importante precisa ser mudado em nossos dias. As mulheres negras continuam, em sua maioria, no trabalho doméstico, com poucos direitos trabalhistas e com renda inferior tanto à dos homens quanto à das mulheres brancas.
Luciana Oliveira, diretora do documentário “O corpo é meu”, é negra e, como tal, sente o machismo de forma distinta das outras. “Ainda que sejamos mulheres, brancas e negras, sofremos no dia a dia discriminações diferentes. As mulheres negras ainda recebem bem menos que as mulheres brancas no mercado de trabalho. As mulheres negras são as que mais morrem por abortos clandestinos, por não ter condições de realizar um aborto seguro.”, comenta.
Mas não é só com as desigualdades de raça que devemos nos preocupar. A mulher está suscetível ao preconceito vindo de todos os lados e, quando falamos em sexualidade, o machismo é ainda mais explícito, pois está realçado pela homofobia. A heteronormatividade – imposta tanto às mulheres quanto aos homens – acaba servindo de braço ao patriarcado quando tenta definir pela mulher com quem ela deve se relacionar. “Não é raro algum homem me assediar na rua pela minha condição de mulher. Se dou um fora, sou atacada agora pela minha condição de lésbica. É bizarro como a cabeça desses caras funciona. Como sou tida, aos olhos da normatividade, como “masculina”, têm caras que também cobram de mim uma postura machista e pseudo dominante sobre outras mulheres.”, conta Camila Galvão, estudante de audiovisual na UFS.
Para Clara de Noronha, poeta e estudante de Letras na UFS, esse estigma interfere na bissexualidade também. “Quando você se identifica como bi em alguma roda de amigos, por exemplo, por mais que as pessoas não falem, alguns te consideram como uma pessoa safada, como se estivesse disposta a topar qualquer parada e não é bem assim […]. Não estou beijando uma mina na festa, na rua ou na praça pra satisfazer fetiches alheios e às vezes eu acho que alguns companheiros não entendem isso, como se tivessem direito de ficar observando pra satisfazer seus anseios, apoiando uma liberdade sexual feminina para se aproveitarem disso em prol dos seus interesses.”, explica.
Para as mulheres trans a situação é ainda mais delicada, pois precisam lidar com uma sociedade sexista, de base legal-biologizante, que lhes nega o estatuto da “feminilidade”. “Os machistas acham que eu, por ter sido designada do gênero masculino, tido como gênero dominante, não poderia transcender para o gênero feminino, que é o gênero oprimido. E aí surge a origem de todos os preconceitos sofridos pelas trans. O próprio movimento LGBT é machista dando prioridade as pautas dos homens gays e invisibilizando as demais pautas.”, explica Geovana Soares, transfeminista e ativista na ONG Amosertrans e Coletivo de Mulheres.
Ainda, embora nascer heterossexual, cis e branca possa ser considerado um privilégio, essa não é uma palavra que cabe às mulheres. Mesmo com essas características que as fazem um “tipo ideal” para a sociedade, elas ainda sofrem com o machismo todos os dias, desde a hora em que colocam os pés pra fora da cama.
“O machismo me afeta até no meu direito constitucional de ir e vir livremente porque, na prática, eu não tenho essa liberdade. Eu tenho medo de andar em certos lugares em certos horários sem a companhia de um homem conhecido e isso não deveria acontecer. Dos meus onze aos quinze anos o machismo me fazia tomar o caminho mais longo pro curso de inglês, pra evitar passar em frente a um estabelecimento onde ficavam dúzias de homens me lançando olhares assustadores. Me faz caminhar mais rápido quando vejo a sombra de alguém atrás de mim. Interfere no meu vestuário e no meu comportamento. Eu sempre sinto que tenho que ser extra cuidadosa num bar, numa festa” comenta Isadora Guerra, estudante de Direito na UFPB.
Finalmente, além de homens e mulheres, todos nós temos características que nos diferem, e isso vai desde raça e sexualidade, como citado aqui, até gostos musicais e formas de se vestir. É importante que exista o reconhecimento do seu lugar de fala, da experiência de falar sobre si mesma e sua história, o que acaba gerando representatividade. Mas os problemas de gênero estão longe de serem resolvidos e, se existe um caminho certo para o feminismo, é andando de mãos dadas ao movimento negro e ao LGBT.
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segunda-feira, 14 de março de 2016
O feminismo e o desafio da interseccionalidade
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